Uma entrevista inédita com Elias dos Santos, artista plástico, poeta, instrumentista, Diretor da Galeria de Artes Antônio Sobreira, da cidade de Guarabira, foi realizada pelos estudantes da Escola Estadual de Ensino Médio Zenóbio Toscano. A conversa foi gravada em vídeo, no dia 19 de maio de 2023 e foi conduzida por Erinaldo Silva (1º A), Elivânia Silva (1º A), Paulo Germano (1º A), Vinícius Caetano (1º C) e Vitória Maria (2º C). Na entrevista, Elias falou sobre a exposição d’Os cem anos do Romance do Pavão Misterioso, expôs seu trabalho na Galeria de Artes e apresentou detalhes de sua trajetória artística.
O artista pernambucano, que vive em Guarabira (PB), emergiu nas artes, descobrindo o talento na pintura ainda criança. Ele contou que recebeu incentivo dos pais, embora ainda não soubesse, à época, as particularidades do cultivo às belas-artes, já que a cidade ainda não valorizava esse campo da atividade humana. Aos poucos, como autodidata, ampliou o seu repertório cultural, sendo inspirado por grandes nomes como Leonardo da Vince, Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin, Van Gogh, e adquirindo qualidades imprescindíveis para a formação de sua individualidade artística, tais como a autenticidade e a força interior.
Erinaldo Silva – O que é o Pavão Misterioso?
Elias dos Santos – O Pavão Misterioso, para nós, é uma coisa inusitada, porque quando ele nasceu, em 1923, não foi um pássaro, e sim uma máquina. A história toda conta isso. Hoje, para nós, O Romance do Pavão Misterioso é um dos elementos culturais mais importantes do Brasil, uma literatura popular inspirada em As Mil e uma Noites. Então, essa é uma homenagem pelo centenário do Pavão da Literatura, de todas as personagens que foram ao Japão, à Grécia, à Turquia. Eles são o Pavão porque são Literatura, e, hoje, a literatura popular mais importante do país, porque virou obra de arte, virou música, virou homenagem no Carnaval.
Erinaldo Silva – Qual a importância do Pavão Misterioso para o Senhor?
Elias dos Santos – Para mim, tem muita importância, pois eu tenho 64 anos, mas quando eu tinha 12 anos, na frente da minha casa, na feira, meu pai comprava esses cordéis – a literatura do povo – e havia dois cantadores, Davi Nogueira e Sebastião da Silva. Eu vi esses artistas cantando “O Pavão Misterioso”: “Eu vou contar uma história/ De um Pavão Misterioso/ Que levantou voo na Grécia/ por um rapaz corajoso/ Raptando uma condessa/ Filha de um conde orgulhoso/”, e daí por diante. Então aquilo me chamou atenção, eu nem pensava em escrever, em fazer teatro, mas a partir dali eu pedi para o meu pai comprar um livrinho daqueles e tentei guardar aquele livrinho porque meu pai deu para mim. Independente de intelectualidade ou não, eu acho que não deveria haver a dicotomia Literatura erudita versus Literatura Popular, tudo deveria ser Literatura, tudo deveria ser arte, porque arte não é só gosto, arte é uma necessidade de você se adentrar em si mesmo, no mundo, e enxergar através do pensamento de muitas pessoas, isso também é importante.
Erinaldo Silva – Na sua opinião, por que o Pavão Misterioso merece um destaque internacional?
Elias dos Santos – Guarabira é o grande celeiro da Literatura de Cordel. Eu creio que devamos chamar a capital da Literatura de Cordel – Guarabira, porque por aqui passou muita gente. E um dos editores é daqui de Guarabira. O povo vinha de outras cidades para imprimir aqui, onde ainda tem as máquinas e, tendo essa literatura sido escrita em 1923, quando ninguém sabia o que era um helicóptero, José Camelo de Melo criou o Pavão, que, lá na literatura, diz ter um botão que aperta e ele sobe, não faz barulho. Ou seja, merece a criação, pois para mim, o artista não tem importância porque o trabalho dele é bonito, ele tem importância se esse trabalho servir à sua comunidade, ao seu povo, ao seu tempo. Uma coisa não é importante só porque é bonita, mas porque ela tem uma concepção capaz de você sentir algo. Quem nunca leu O Romance do Pavão Misterioso deveria ler, porque o Pavão não é o pássaro, o Pavão é aquela literatura que ele transformou num aeroplano, num avião que levantou voo lá na Grécia. É uma história de criação própria, que tem uma identidade cultural muito grande, então merece esse destaque.
Elivânia Silva – Existe alguma disputa política entre Pilõezinhos e Guarabira pela divulgação d’O Romance do Pavão Misterioso?
Elias dos Santos – José Camelo de Melo Rezende tem essa controvérsia de que ele é daqui, de que foi de Pilõezinhos, no tempo em que esta era distrito de Guarabira. Então, o registro dele é guarabirense. Hoje, o Pavão pertence a Luzeiro, é quem edita as obras desses grandes poetas do cordel. Existe isso sim, mas eu acho que não deveria. Só de ele ser um paraibano, já nos basta, para mim, a grandeza de uma pessoa da nossa comunidade. Nós somos o Brasil, dividido em pedacinhos. Então, o nosso vizinho merece ser nosso amigo também. A mesma coisa é com Sapé em relação ao poeta Augusto dos Anjos, natural de Espírito Santo, que é importante para a Paraíba inteira. É o caso de José Camelo de Melo Rezende, é o “pilõezinhense de Guarabira”, pode chamar assim. Então eu acho que isso é uma disputa que não tem nada a ver. No país, quando você ainda não tem nenhuma representação, você pode estar onde estiver – “não é daqui não” – mas quando você tem, as pessoas parecem ter essa fantasia de que “Não, é daqui, é daqui”. Se ele é um brasileiro que tem esse potencial, a gente fica alegre.
Vinícius Caetano – Como o Senhor falou, “Arte não é só beleza”, eu concordo porque acredito que arte, basicamente, seja tudo o que ultrapassa a própria barreira do que foi criado para ser. Por exemplo, o Senhor disse que a obra O Romance do Pavão Misterioso ultrapassa a barreira do que foi criado para ser e se tornar algo maior, para ser arte. Uma obra precisa tocar a pessoa, não importa do jeito que seja. Quando eu estava pesquisando, encontrei muito pouca coisa sobre a Galeria, por exemplo, sobre o Pavão. No caso, eu achei esquisito, porque eu mesmo não sabia que existia essa galeria, eu vim saber recentemente através da professora. Ela falou sobre a referência do museu, e eu fiquei todo confuso quando fui pesquisar. Então, existe uma galeria de artes que eu não sabia. Como o Senhor faz para divulgar a exposição? Como fazemos para saber as divulgações da galeria?
Elias dos Santos – Eu sou o Diretor da Galeria. Para esse espaço ser divulgado, o Governo tem um programa pessoal, essa parte eles divulgam. Tudo isso aqui está na internet, toda a exposição está na internet. Agora, as escolas, os professores precisam se inteirar, principalmente os gestores, sobre os departamentos culturais da cidade para que passe isso para os alunos. Eu vou passar nas escolas para fazer o convite. Essa galeria está aqui desde 1986. Você é muito jovem, mas há pessoas aqui na cidade inteira que sabem que essa galeria existe e sabem do teatro também. Então, é preciso que façam um esforço. Nesta exposição, temos vinte artistas, todos de Guarabira, porque eu poderia dizer: “vou mesclar aqui artistas de outros lugares”, mas eu coloquei só daqui pela necessidade de incentivar, porque quando eu comecei a fazer arte, foi aqui em Guarabira, eu tinha a maior dificuldade do mundo. A minha apresentação em São Paulo foi muito difícil, era como se eu tivesse ido para Paris. Hoje não, hoje você vai para a internet para ver um material no Museu do Louvre. O pessoal da Escola Dom Marcelo, por exemplo, sabe que tem essa galeria, eu já expus um garoto de lá aqui. Existem pessoas que fazem trabalho e eu não sei por que nunca vêm à galeria, nunca aparecem. Então, é preciso que as escolas, os professores que trabalham no campo da arte se inteirarem, vir à cidade para procurar e ver o que tem realmente, porque Guarabira não é tão grande assim.
Vinícius Caetano – O Senhor acha que a Prefeitura deveria fazer um perfil da Galeria no Instagram para divulgar mais?
Elias dos Santos – A CODECOM é quem divulga. Tem uma página no site da Prefeitura, você acessa tudo isso aqui; tem uns vídeos da galeria, então entra no site que tem acesso à Galeria de Artes Antônio Sobreira. O que falta é isso. Quantas vezes a escola entrou no site da CODECOM? Então precisa também. É uma parte da prefeitura e está na internet. Tudo que fazemos aqui passa por lá.
Vinícius Caetano – Como o Senhor entrou no ramo da arte?
Elias dos Santos – Ah rapaz, a minha mãe era bailarina de balé clássico e o meu pai era um artesão que fazia sela para cavalo. As mãos do meu pai eram cheias de calo, e eu fazia isso com ele. Minha mãe fazia desenho também, e eu vejo que eu aprendi. Eu tenho muito livro de arte, é o que eu mais tenho. Eu tinha um encantamento por arte e, a partir dos 12 anos, eu já pintava. Agora eu vim pintar como artista visual, artista profissional a partir de 1980. Eu só vim vender um trabalho a partir 1990, não é fácil né, mas quem quer ser é. O importante é que o seu tamanho, quem diz isso é você. Você vai saber o seu tamanho quando alguém passar e disser: Poxa, valeu a pena né? Eu não faço arte porque quero ser famoso, eu faço porque sou artista. Eu não sou pintor, eu sou artista. Para ser pintor, é só ensinar tecnicamente, você fica pintando espetacular, agora a sua identidade como artista, só quem adquire isso é você. É como jogador de futebol: você vê um menininho jogando com uma bola pequenininha dentro da lama, para umas pessoas não vale nada, mas para as pessoas que compreendem e olham para ele reconhece “ele vai ter futuro”. Então é assim: eu quando olho para um trabalho de um garoto, eu sinto se ele realmente, a partir dali, tem condições de chegar mais distante, porque é uma coisa particular de cada um. Isso é uma identidade que você vai criando. Logo que eu comecei a fazer o que faço hoje, tinha gente que não gostava, mas o meu trabalho, mesmo se não estivesse assinado, você dizia “esse trabalho é do Professor Elias dos Santos”, porque ele tem uma identidade. Então é como a cultura, quando chegar alguém aqui de fora sabe que o que está acontecendo aqui é o São João porque é uma coisa cultural, é uma identidade cultural do nosso povo.
Vinícius Caetano – Muitos dos que estão vendo ou ouvindo a entrevista não sabem, o Senhor poderia explicar um pouco mais sobre a história da galeria?
Elias dos Santos – A galeria foi criada no primeiro governo de Zenóbio Toscano, que, para mim, foi um grande mecenas das artes de Guarabira. Existia antes e depois de Zenóbio Toscano. Zenóbio era um colecionador de artes que tinha mais artes, como coleção, na Paraíba. Quando ele se tornou Prefeito de Guarabira, ele teve essa sensibilidade de criar esse teatro que era um cinema, que a prefeitura adquiriu, criou o museu e o Centro de Documentação, e em seguida, ele criou o Casarão da Cultura, onde sediará a Exposição Internacional de Arte Naif, este ano. Então, a galeria foi criada também nesse tempo. Eu fui um dos primeiros diretores, e agora sou de novo. Quando Jáder Pimentel foi o Prefeito de Guarabira, eu fui um dos diretores daqui também. E a galeria já passou por muita exposição. Muitos artistas aqui, por exemplo, começaram num projeto que eu fiz chamado Arte em Outdoor – eram umas telas muito grandes que fazíamos na Festa da luz, eu fiz dezoito edições. Todos os artistas estão aqui, os mais antigos, eu, Carlos Damião, Afrânio… E tenho a felicidade de estar trazendo outras pessoas que estão aqui hoje. Por exemplo, você faz arte, então você vem à galeria para eu conhecer a sua obra. Mas, realmente, as pessoas que estão começando e têm interesse. Porque pintar não é difícil, tocar não é difícil, difícil é você se identificar. Eu sou instrumentista, eu toco violão clássico, quando eu toco as pessoas sentem que Elias existe, mesmo aquela partitura não sendo minha. Você pode fazer uma releitura de Guernica, de Picasso, e dentro da sua concepção, você faz um trabalho que não tem nada a ver com a obra dele, mas é o mesmo assunto, isso é identificação.
Vinícius Caetano – Como funciona a exposição? Como o Senhor organiza, chama os artistas, como funcionam as datas, tem um intervalo de tempo para as exposições?
Elias dos Santos – Essa exposição vai ficar até o fim do ano, porque a gente vai andar com ela pelo estado. Realmente é um evento que a gente faz para o Cordel do Pavão, para mostrar o seu tamanho enquanto literatura, uma literatura nossa. É necessário que cuidemos disso tudo, o ano do Pavão, como uma forma de gratificar o trabalho do artista. É o que a gente pode fazer por um grande nome da cidade. Existem pessoas que têm esquecido porque a sua própria cidade esqueceu, mas não pode ser assim. Devemos ser gratos a Vinícius, que chegou aqui, e a Vitória Maria, que tem uma concepção nova, à Professora Elciane que trouxe vocês pela concepção de chegar aqui e vir a conhecer. Isso é bacana! E daqui para frente, quem sabe, você pode ser um médico, mas pode ser um artista também. Isso é importante. Para aquilo que a gente quer, o espaço existe, a gente tem que ir buscar, porque nada é fácil, tem que saber onde está, tem que procurar.
Vitória Maria – Antes de o senhor emergir como artista, o que o senhor sentia ao desenhar e pintar?
Elias dos Santos – Na verdade, eu pensei em estudar, acho que eu tinha cinco anos. No meu tempo não era como agora, que a mãe bota o menino quase bebê na escola. E quando eu cheguei lá na minha escolinha, tão simples, tinha um quadro na parede cheio de animais, e eu desenhava aquela imagem. Aí a professora disse para meu pai: “Ele não vai conseguir aprender as letrinhas porque ele só quer desenhar isso aqui”. Meu pai comprou o papel, quase que a professora chorava porque meu pai deu cinco vezes o valor daquele papel, levou para casa, e isso foi um incentivo, porque meu pai apesar de ter sido um homem cultural, era um pouco ignorante para algumas coisas, mas ele disse “você vai desenhar aqui e vai estudar na escola. Então eu ia para escola e sabia que quando chegasse eu ia fazer aquilo. E com doze anos, eu comecei a pintar. Eu queria ser artista realmente. Eu não sabia o que era e como era porque a cidade não tinha nada disso, ninguém me influenciou aqui. Pedi a meu pai para ir comprando livros para mim, obras de Leonardo da Vince, Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin, Van Gogh – este é um cara que me inspirou pela sua força interior! Por aí, eu comecei a conhecer e a visualizar, eu queria ser artista. E, a partir daí, eu comecei a pintar sozinho como autodidata. Meu pai comprou um monte de tinta de toda qualidade para mim, tinta de pintar porta… Eu fui aproveitando e quando eu fui tendo necessidade de conhecer outros materiais, eu comecei a ir para João Pessoa, sozinho, e conheci o ateliê de um grande nome paraibano, Mestre Alcides, e outros artistas lá. Ao mesmo tempo, eu conheci o artista paraibano Flávio Tavares, Miguel dos Santos, artista de Caruaru, e a partir disso, comecei a criar uma obra minha. Existe um roteiro meu dos anos 80, quando eu comecei como profissional até agora. Tenho meu ateliê, que fica perto do Victor Center Hotel, lá tem muito material: escultura e outras coisas. Infelizmente, eu sou mais reconhecido a partir de João Pessoa.
Vitória Maria Barbosa – O que o Senhor diria para os leitores do Gazeta News Estudantil sobre como descobrir um artista dentro de si?
Arte é poesia interior. “Que interesse pode ter a arte se não puder ser acessível a todos?” (William Morris). Todo mundo pode fazer arte, mas identificar-se como artista é algo pessoal. É como jogador, todo mundo joga bola, mas para pegar a bola e colocar no lugar certinho, é pessoal. O técnico diz faça assim, aí ele faz diferente, porque daquele jeito todo mundo faria. Quando ele faz diferente, ele consegue. Essa diferença é importante. Se você não tiver poesia interior, você não tem identidade. O que identifica você é a sua poesia. Quando eu falo de poesia, não é aquilo que você rima, aquilo que você fala, a poesia é complexidade, é uma coisa que parte de você. Ao olhar para o seu gato, ele está olhando para você e não diz nada, mas você fica encantado porque ele quer perguntar alguma coisa para você. Eu compreendo. Poesia para mim é isso. Antes de José Camelo de Melo Rezende escrever O Romance do Pavão Misterioso, ele havia escrito muitas coisas antes. Numa grande escavação de minas, você vai procurar um diamante, todos são iguais, mas um dia, de tanto cavar, você encontra um que é diferente. E é isso que fez a diferença na obra dele.
Vitória Maria Barbosa – Existem muitos artistas que são introduzidos na arte, mas não sentem a arte dentro de si porque seus potenciais não são explorados nas escolas, nas ruas. Então, o Senhor acha que seria necessário, por exemplo, um projeto para procurar esses artistas e encontrá-los?
Elias dos Santos – É como eu falei para você. O espaço existe. Eu sempre digo para meus alunos: existe um espaço para você. Quando Deus criou você, Ele deu tudo o que você precisa, sua capacidade interior de se desenvolver e se encontrar. Então aquele espaço existe, mas se você achar que só as pessoas devem procurá-lo para você, você nunca se encontra. Esse é o grande segredo, é você também procurar se encontrar dentro de si, que seu espaço está ali. Não importa se é algo grande ou algo pequeno, o espaço que você tiver e trabalhar bem direitinho, vale a pena.