“Pro dia nascer feliz”

Elciane de Lima Paulino

  “A esperança não murcha, ela não cansa” – disse-me, uma semana atrás, ao pé do ouvido, a voz do poeta, minutos depois de eu entrar numa sala de aula remota, numa das turmas dos anos finais do ensino fundamental, e sair como entrei: boca e ouvidos cerrados, olhos e coração abertos.

          Não descreverei o fracasso, apenas rememorarei a lição do poeta. Prefiro prestar atenção ao propósito daquela voz, já que hoje, no momento em que lancei o link de uma nova aula, uma nova tentativa “sem a expectativa da audiência”, algo interessante me sucedeu.

          PLUCT.

          – Bom dia, Professora!

          – Bom dia, Carlito! Tudo bem?

         Desta vez, havia um menino, na verdade um gigante, do outro lado da tela, nu da cintura para cima, interagindo comigo. Não o censurei por mostrar o traje a pele, ao contrário, compreendi que o importante é que estava ali para o dia nascer feliz!

          Iniciei a aula com todo o cuidado para o gigante não adormecer – o menino gigante, nu da cintura para cima, que usava o celular da “irmã”. A aula correspondente à oficina número um da Olimpíada de Língua Portuguesa começou bem.  

          – Leia este fragmento do texto Transplante de menina, da escritora Tatiana Belinky.

          – Calma, Professora. Eu não sei ler direito.

          – Tudo bem, eu estou calma. Eu espero o seu tempo. – E esperaria o tempo que fosse necessário, pois o sentimento de gratidão que me preenchia era a expressão de uma dívida que nunca se paga, afinal, ser professor num contexto de ausências, é satisfazer-se com o mínimo de participação, cujo alcance é a síntese do pensamento poético: A esperança não murcha…

          – Desculpa aí, tia! (Interrupções: “Bora, Carlito!”; “Oxente, menino, ele tá estudano!”). Gritos confundiam-se com a festa de um passarinho (Amadina fasciata) que não parava de cantar na “casa do menino”. Enquanto isso, Carlito soletrava as palavras, e eu tentava soletrar o mundo à sua volta.

          – Muito bem, Carlito! De que se trata esse texto?

          Ele entendeu que se tratava das lembranças da narradora ao ver o carnaval no Rio de Janeiro pela primeira vez. Mas eu ainda não havia compreendido o porquê de escrever “irmã” e “casa do menino” entre aspas em parágrafos anteriores, mas logo o leitor saberá.

          Havia planejado uma atividade com dez questões, entretanto, pedi que copiasse e respondesse apenas cinco. Eu o aplaudia à medida que ele copiava e respondia… um… dois… três… quatro… cinco…

          – Não estou acostumado a escrever isso tudo não, Professora! Eu escrevo devagar demais. E ela tá precisando do celular.

          – Ela quem? Sua mãe?

          – Não, minha irmã. Minha irmã não. A neta da mulher que é dona dessa casa onde vivo com meu pai.

          – E sua mãe?

          – Minha mãe morreu mês passado, mas não foi de COVID.

          – Entendi. Sinto muito, meu querido… Já estamos no final da aula… Você concluiu com maestria a atividade proposta. Parabéns! Obrigada pela participação! Se não fosse você, eu estaria comigo mesma nesta sala.

          – Fazer o quê? Tem que estudar para ser alguém na vida e pro dia nascer feliz!

          E o gigante despediu-se sorrindo.

          Para o dia nascer feliz, eu poderia ter seguido os conselhos do mestre Ricardo Azevedo em seu livro Contos de enganar a morte, ultrapassar o sistema burocrático da escola em delimitar os horários das aulas e ter ficado mais alguns minutos para falarmos sobre o luto; eu poderia ter evoluído em termos humanitários e sido generosa, mas dentro de mim, uma flor pávida reergueu-se junto àquela, a que o poeta nomeou de “Esperança”, e comecei a dançar a canção daquele passarinho com passos de marchinha de carnaval. Enquanto isso, o menino gigante cresceu ainda mais diante de mim, ultrapassando os limites da perda e transformando ausências em evolução.

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