O limite da contrição está no entendimento do ato

Elciane de Lima Paulino

“Quem nunca cometeu pecado que atire a primeira pedra”. Ritinha ouvia o Pe. Arnaldo referir-se ao excerto muitas vezes durante as missas aos domingos, quando ia agarrada na barra da saia de Dona Luíza. Esta era alcunhada de Barata-de-igreja, mas não fazia questão porque o serviço religioso e a caridade eram a porta de entrada para o céu. Além do mais, dizia ela “eles não conhecem os desígnios de Deus”.

A menina aprendeu muito com o Pe. Arnaldo, porém entendia o contrário do que ele queria dizer. Assim acumulava ensinamentos religiosos distorcidos das intencionalidades cristãs.

Nos preparativos para o dezembro de 1900, havia muita movimentação na matriz. Pe. Arnaldo viajara às pressas para a santa terra estrangeira com o intuito de visitar uma tia muito querida, a qual, pelo que se comentava, estava “morre-mas-não-morre”. Felizmente, a visita do sobrinho fez bem, a saúde da tia foi restabelecida e o padre pôde regressar ao Brasil, trazendo consigo três pedras para o presépio da igreja. A representação do estábulo de Belém estava suntuosa e a beleza do Natal atraía os fiéis para os melhores registros fotográficos do ano, menos Ritinha. Nem a Estrela que guiou os três Reis Magos conseguiu ofuscar as pedrinhas alheias dos olhos da menina.

Na missa mais esperada do mês, ela percebeu que restava apenas uma pedra no presépio. Mais uma vez sentiu-se fortalecida por suas inocentes intenções, afinal compartilhava traços em comum com outros fiéis não menos assíduos que sua acompanhante de domingo.

Enquanto a velha amiga fazia a oração, Ritinha apressou-se, não pensou duas vezes: “essa é minha!” Agarrou a última pedra da terra santa e colocou-a no bolso. Depois da peraltice, puxou a saia de D. Luíza como quem insistisse para sentar no banco, antes que ficassem sem assento.

O peso da consciência foi maior que o do bolso, embora a menina entendesse que não levaria a pedrada de ninguém, afinal era o que mais o Pe. Arnaldo recomendava nas missas: “Atire a primeira pedra quem não tem pecado”. E a frase repetiu-se até a homilia. Mais uma vez o santo padre a salvou: “E disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus”.

Ritinha, na sua ingenuidade, entendeu que o lugar no reino celestial estava garantido. O reverendo continuou transmitindo os ensinamentos da igreja sem se dar conta de como o livre arbítrio da linguagem conduzia suas ovelhas. E Dona Luíza, se lesse esse conto jamais perdoaria Ritinha e perderia sua vaga no céu.

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